segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Uma noite no pantanal


Era noite, o vento varria as planícies, aquelas que em momentos do ano ficavam cobertas de água, invisíveis aos olhos do homem. A fazenda era uma grande propriedade, cercada de floresta, a frente da sua sede um vasto campo de futebol, para as peladas dos peões. A lua não ficava solitária no céu, não havia poluição nem nuvens para lhe tirar a companhia das estrelas. A família pantaneira descansava no conforto que as posses garantiam.
 Seria assim, uma noite tranqüila, não fosse o chamado da noite, fatiando o quadro num belo uivo harmônico com os barulhos da mata. Agourento, porém belo, denunciando a presença de uma fera nos arredores. A escuridão tem o poder de ao menor sinal de medo, transformar o natural em inefável.
Um segundo uivo e um movimento já podia ser visto na estradinha de terra. A fazenda estava cercada de aldeias. E primeiro um, depois outro, e enfim uma multidão de indígenas povoava o caminho em direção a sede. Em alguns minutos dezenas de pessoas se assentavam no campo de futebol e voltavam-se à casa como quem se cerca de um altar. O pedido silencioso como uma prece como que mudava sensivelmente o tom dos bichos da mata.
_ Não vá...
Não precisava responder à sua esposa, era um Medeiros, não cabia outra coisa a não ser ir. Calçou as pesadas botinas, sujas de lama endurecida e se pôs a caminhar em direção à porta de madeira. Ali atrás o seu arsenal se exibia, como se cada arma se exultasse ao ser a escolhida, e por isso, diante dos olhos graves, destilavam os seus mortíferos encantos. Retirou a espingarda, conferiu a mira e a munição, quase se podia ouvir o suspiro do metal. Ao atravessar a sala ainda olhou a preocupação da dama. De novo não disse nada, acenou quase milimetricamente com a cabeça e afundou o chapéu em sua cabeça. Os três filhos, uma menina e dois meninos, tinham os olhos estatelados, o medo no semblante, e se agarravam cada um a seu modo nas saias da mãe, não ousavam falar nada, eram tempos de ampla autoridade paterna. Este saiu, o mais novo correu para o colo da mãe, e todos saíram no encalço do pai.
Já se ouvia um terceiro uivo e a figura do homem ia caminhando, entrando na escuridão da mata, observada pelos índios, porém, carregada pelos olhos molhados da esposa. A cada passo se tornando um vulto, como que engolido pelas trevas. A senhora sabia o que lhe esperava. Horas de aflição. Os índios mantinham sua posição, não se via com que expressões.
_ São só índios querido...
Disse para espantar o próprio medo, mas viu que o mais velho também engolia seco. A tribo continuava sentada ao longo do campo, mas agora observavam a floresta. Outrora um vulto, o homem agora era indistinguível da escuridão. Será que algum olho humano ainda o via? Ou agora era privilégio dos espíritos da natureza e dos animais noturnos?
A cadeira de fio na varanda da casa era um posto de observação. A reza baixinha competia com alto chio dos insetos. A filha, criança do meio, fechava os olhinhos de sono, era quem ocupava o colo da mãe, os dois meninos sentavam no chão com os braços apoiados nos joelhos. A cada hora o temor crescia como um fungo nos corações. E se ele não voltasse?
Como uma resposta a tanta expectativa um novo barulho. Um tiro. Menos agourento, menos bonito, e trazendo consigo um alívio inicial, embora denunciasse a distância que ele estava, que não era pouca. O sobressalto dos índios também parecia conter um pouco de desopressão.  Para a família, aquilo significava que de agora em diante tratava-se de uma contagem regressiva, e os músculos rígidos se soltavam com prazer.
Mais algumas horas e a floresta começava a vomitar, longínqua, o vulto, e este pouco a pouco se tornando homem, a cada passo, próximo. O peito palpitava de emoção. As crianças sorriam deixando transparecer o orgulho. O homem não estava só, arrastava com uma das mãos o corpo morto, de pelos negros como a noite, e na outra mão mantinha o algoz apoiado no ombro. A expressão sempre sisuda ainda coroava o rosto quando se dirigiu à tribo com o produto da caçada noturna. Era caça, mas aquilo não era sobre carne, aquilo não era sobre diversão. Os índios, ao observar a figura inerte do lobo inerme perante seus pés, agora partiam, tal como antes vieram. Escorriam os últimos tons de medo da mulher e seus três filhos.
O homem, abandonando a carniça, pensava que o outro dia era longo o bastante para dar fim àquilo. Voltou-se à varanda e observou a família à espreita, foi se aproximando com passos firmes. Quando finalmente alcançou a soleira, em pé diante dos quatro, sua altura chegava a assustar, característica dos Medeiros. Com um gesto duro, sem o menor sinal de suavidade, retirou o chapéu e estendeu-o à esposa. Adentrou a casa.
_ Vamos, é muito tarde... Passou da hora de dormir.

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