segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Gabriela sem graça

Olha que cara mais fechadinha, e pensava eu que tinha um show por trás dessa cortina. Talvez até tivesse, mas nunca descobriria. A história do meu primeiro amor é nitidamente uma história de duas vias. Eu imaginava, ela existia, e nada tinha de parecido as duas versões de menina.  Cabelos castanhos escuros, bochecha de criança, parecia uma adulta. Sem graça, sem doce, parecia ter vindo a passeio. A gente brincava, se sujava, gritava como crianças, ela sempre limpinha demais, quieta como uma vasilha. Nada mais desinteressante. Não quis disputar uma só prova da gincana, imagina recusar uma corrida do ovo? Quem sabe o bingo, a Nana é quem chama as pedras, ela sabe ser divertida, ledo engano, sentada continuava a menina.
Eu, criança que era, ainda desconhecia como a perfeição é uma faca de dois gumes, a Gabriela era tão perfeitinha, tanto mais, que até a beleza ela perdia. Hoje vejo a imagem, fica velado o segundo depois na fotografia, e neste há sempre a possibilidade de ter sido sorriso, porém quebro a expectativa, a cara continuou fechadinha.

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

A vida de Taciana

Como deve ser boa a vida da Taciana. Senta no balanço, dá um grito. Gira pelo universo, visita as estrelas num pra lá e pra cá simplesmente. E o barulho indica a falta de óleo, escuto de longe, em seguida dá mais um grito. Como deve ser boa a vida da Taciana, nessa ilha de prédios uma bela casa, coisa que entrará em extinção. E transborda a excitação, dá mais um grito, leva um grito da mãe.
Bom mesmo é quando faz calor e o pai limpa a piscina. Do verde escuro ao azul mais ou menos. Lança-se na água, respinga nos parentes. Soltou um grito antes de afundar. Taciana vai levando as coisas, vai soltando gritos. Enquanto o pai faz churrasco, corre pelo jardim. Taciana não sente nenhuma vontade de crescer, ou disfarça bem demais. Dá um grito e corre para os braços da mãe. Como deve ser boa a vida da Taciana, cheia de detalhes, de sons estridentes e ilusões.
Um dia Taciana irá crescer, ir para longe do jardim, da piscina, dos domingos de churrasco. Os gritos, no passado tão livres, tal qual fossem criminosos condenados, estarão no fundo da prisão da goela. Donde estou não poderá haver silêncio ainda assim. Quem sabe o barulho dos carros, com sorte o barulho da chuva. Río sem graça pensando em quando isso acontecer. É provável que eu que sou um tanto incoerente e reclamo do barulho, quem sabe me entristeça, aponte as orelhas para a janela do apartamento... É, quem sabe, ao não escutar nenhum vestígio de Taciana, eu até escute a falta gritar.   

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Uma noite no pantanal


Era noite, o vento varria as planícies, aquelas que em momentos do ano ficavam cobertas de água, invisíveis aos olhos do homem. A fazenda era uma grande propriedade, cercada de floresta, a frente da sua sede um vasto campo de futebol, para as peladas dos peões. A lua não ficava solitária no céu, não havia poluição nem nuvens para lhe tirar a companhia das estrelas. A família pantaneira descansava no conforto que as posses garantiam.
 Seria assim, uma noite tranqüila, não fosse o chamado da noite, fatiando o quadro num belo uivo harmônico com os barulhos da mata. Agourento, porém belo, denunciando a presença de uma fera nos arredores. A escuridão tem o poder de ao menor sinal de medo, transformar o natural em inefável.
Um segundo uivo e um movimento já podia ser visto na estradinha de terra. A fazenda estava cercada de aldeias. E primeiro um, depois outro, e enfim uma multidão de indígenas povoava o caminho em direção a sede. Em alguns minutos dezenas de pessoas se assentavam no campo de futebol e voltavam-se à casa como quem se cerca de um altar. O pedido silencioso como uma prece como que mudava sensivelmente o tom dos bichos da mata.
_ Não vá...
Não precisava responder à sua esposa, era um Medeiros, não cabia outra coisa a não ser ir. Calçou as pesadas botinas, sujas de lama endurecida e se pôs a caminhar em direção à porta de madeira. Ali atrás o seu arsenal se exibia, como se cada arma se exultasse ao ser a escolhida, e por isso, diante dos olhos graves, destilavam os seus mortíferos encantos. Retirou a espingarda, conferiu a mira e a munição, quase se podia ouvir o suspiro do metal. Ao atravessar a sala ainda olhou a preocupação da dama. De novo não disse nada, acenou quase milimetricamente com a cabeça e afundou o chapéu em sua cabeça. Os três filhos, uma menina e dois meninos, tinham os olhos estatelados, o medo no semblante, e se agarravam cada um a seu modo nas saias da mãe, não ousavam falar nada, eram tempos de ampla autoridade paterna. Este saiu, o mais novo correu para o colo da mãe, e todos saíram no encalço do pai.
Já se ouvia um terceiro uivo e a figura do homem ia caminhando, entrando na escuridão da mata, observada pelos índios, porém, carregada pelos olhos molhados da esposa. A cada passo se tornando um vulto, como que engolido pelas trevas. A senhora sabia o que lhe esperava. Horas de aflição. Os índios mantinham sua posição, não se via com que expressões.
_ São só índios querido...
Disse para espantar o próprio medo, mas viu que o mais velho também engolia seco. A tribo continuava sentada ao longo do campo, mas agora observavam a floresta. Outrora um vulto, o homem agora era indistinguível da escuridão. Será que algum olho humano ainda o via? Ou agora era privilégio dos espíritos da natureza e dos animais noturnos?
A cadeira de fio na varanda da casa era um posto de observação. A reza baixinha competia com alto chio dos insetos. A filha, criança do meio, fechava os olhinhos de sono, era quem ocupava o colo da mãe, os dois meninos sentavam no chão com os braços apoiados nos joelhos. A cada hora o temor crescia como um fungo nos corações. E se ele não voltasse?
Como uma resposta a tanta expectativa um novo barulho. Um tiro. Menos agourento, menos bonito, e trazendo consigo um alívio inicial, embora denunciasse a distância que ele estava, que não era pouca. O sobressalto dos índios também parecia conter um pouco de desopressão.  Para a família, aquilo significava que de agora em diante tratava-se de uma contagem regressiva, e os músculos rígidos se soltavam com prazer.
Mais algumas horas e a floresta começava a vomitar, longínqua, o vulto, e este pouco a pouco se tornando homem, a cada passo, próximo. O peito palpitava de emoção. As crianças sorriam deixando transparecer o orgulho. O homem não estava só, arrastava com uma das mãos o corpo morto, de pelos negros como a noite, e na outra mão mantinha o algoz apoiado no ombro. A expressão sempre sisuda ainda coroava o rosto quando se dirigiu à tribo com o produto da caçada noturna. Era caça, mas aquilo não era sobre carne, aquilo não era sobre diversão. Os índios, ao observar a figura inerte do lobo inerme perante seus pés, agora partiam, tal como antes vieram. Escorriam os últimos tons de medo da mulher e seus três filhos.
O homem, abandonando a carniça, pensava que o outro dia era longo o bastante para dar fim àquilo. Voltou-se à varanda e observou a família à espreita, foi se aproximando com passos firmes. Quando finalmente alcançou a soleira, em pé diante dos quatro, sua altura chegava a assustar, característica dos Medeiros. Com um gesto duro, sem o menor sinal de suavidade, retirou o chapéu e estendeu-o à esposa. Adentrou a casa.
_ Vamos, é muito tarde... Passou da hora de dormir.

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

O Mal



   Um dia acreditei com todas as forças no sobrenatural. Era necessário uma série de rituais que impedissem o sorrateiro mal pronto a prejudicar, o invisível estava prestes a dar o bote, por detrás das sombras, e qualquer cuidado era pouco. Nada de rezar deitado, isso não é respeitoso, nada de usar palavras “ruins” (como se existissem palavras desse tipo), se cuide com os pensamentos, desejar o mal é quase o mesmo que fazê-lo. Deus era a representação de tudo que podia impedir o mal, cerceá-lo, me proteger. E eu precisava provar o tempo inteiro de que lado estava. Nada é de graça. E de qual lado eu estava mesmo?
    Um dia descobri que as sombras estavam em mim, era da minha escuridão que se tratava, era meu o invisível perto de atacar. Não podia ver antes, estava preocupado demais com a possibilidade de um fantasma aparecer, como num filme de terror, enquanto olhamos para o espelho... Não é por nada que o mal apareça no espelho. E sempre quando estamos sós.
    Essa descoberta reduziu a importância de Deus na minha vida. Reduziu a zero a importância dos rituais, embora estes às vezes sejam difíceis de abandonar. Aprendo a aceitar o meu “mal” e faço o luto de Deus, demorado, mas em processo. A vantagem é que já não tenho mais tanto medo. E ser “bom” é responsabilidade minha comigo mesmo.
    Como ateu eu estaria discutindo a existência de Deus, por isso, não me encaixo aí, o meu debate não é no campo científico, se existe um ou não, isso não me interessa. A realidade das coisas merece só um tanto de atenção e pode ser facilmente superestimada. A questão toda tem relação com apenas um sujeito. Cada um que responda a sua pergunta como quiser. A minha resposta, esta é só minha, e isso deve ser entendido da maneira mais radical possível, tanto que é preciso questionar qualquer pretensão (minha ou de outrem) de que ela valha para mais alguém.