segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Sobre fila, morte e vida


Caminhava lentamente pelo calçadão da XV. Não dá prá dizer que saboreava o caminhar, pois era tanta gente junto que o percurso exigia alguma atenção, se é que se quisesse não esbarrar com ninguém. Via que ali a vida tinha duas dimensões que se contradiziam. Por um lado era vida viva, barulho e movimento. Pessoas comprando, pessoas vendendo, trocando o mostruário, gritando as melhores ofertas ou o cardápio do dia. Artistas de rua fazendo centavos, de moeda em moeda, como favores baratos. Alguns paravam, observavam, sorriam, a maioria passava. Os furtos bem encaminhados, o boneco dançando sozinho, o povo dançando conforme a música da cidade. Nem o sinal vermelho pára o calçadão, em que pese que os carros apressados param, pois a rua é soberana, diga o que disser as regras de trânsito. A coisa toda acontecia ali, naquele trajeto reto dos Correios à Ozório, porém tortuoso no complexo vai e vem de quem caminha sem querer topar. Vida, urbana, mas vida, e tanta vida sempre tem de esconder um pouco de morte, pensou enquanto se matava de prazer com um cigarro porcaria. Tanta gente fazendo a mesma coisa. Todos os dias. Seguindo o mesmo trajeto reto ou tortuoso, cruzando a mesma fonte, o mesmo bonde, as mesmas galerias. Comendo nos mesmos restaurantes mal cheirosos. Como pode sermos tão iguais, tão previsíveis quando se olha de longe? Todos vão sempre aos mesmos lugares, consomem as mesmas coisas, caminham sobre o mesmo chão cansado de ser pisado. A mesma conversa mole, o mesmo desejo mórbido pelo que nunca vai ter. Igual... Seria esse o preço a se pagar por viver em conglomerados? Ser forçado a andar pelo trilho disponível? 
Finalmente, após alguns minutos de vida e morte, chegara à Ozório, era o que denunciava as árvores, a feira itinerante, no entanto, a revelia de ter finalmente chegado à praça, não chegara a nenhuma conclusão confortável. Continuou sua caminhada até a próxima fila.

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Poesia que mata


O cara pensava na menina, dia sim, dia não. Às vezes em espaços de tempo maiores. Há algum tempo ela tinha uma existência intermitente, nos intervalos da vida real, aparecendo do nada e sumindo na conveniência, no exato momento de deixar antever o que passava em seu desejo. Por vezes ele se sentia como um astrônomo, observando o cosmos, surpreendendo-se pelos fenômenos desconhecidos, o que é próprio do campo do outro, este ser por detrás de uma cortina de enganos. Na maioria das vezes se sentia um idiota, entretido com a perfeição do impossível, capturado por alguns devaneios, amarrado a um copo de cana e sustentado por um careta entre os dedos. Antes pudesse escrever alguns versos. Aprisioná-la num conjunto de letras, tapar-lhe a boca com suas palavras, apenas as rimas certas para que tudo ficasse bem. Para que tudo fosse como ele sonhou. Assustou. Seu ódio surpreendia tanto quanto seu amor. Aquilo seria matá-la, tirar dos seus atos a surpresa, o sorriso enigmático. Era um crime, ainda que fosse tentador. Abriu os olhos do devaneio e tudo continuava igual como sempre. Felizmente, e isso o confortava tanto quanto o infligia, poesia não era seu forte.



segunda-feira, 4 de novembro de 2013

O monstro da criança

   Era noite... Er... É, definitivamente era noite. Eu estava de frente para a casa, a goiabeira a minha direita, mais precisamente a garagem se mostrava na direção do meu nariz. Podia ver lá no fundo o muro que delimitava o espaço da casa, a área de limpeza e a dispensa. Não havia ali uma alma viva e era essa justamente a preocupação, isto é, que houvesse ali alguma alma solta do corpo. Aquela mesmíssima cena já havia ocorrido uma dezena de vezes, sempre tudo não passava de uma impressão ruim. Daquela vez havia algo estranho. Não saberia dizer exatamente o quê. Posicionei meu olhar matreiro para aquele corredor fantasmagórico. Um vento vindo do nada varreu o chão levantando uma poeira e fazendo dançar uma sacola de supermercado que estava por ali. A tensão ia aumentando pouco a pouco, minha respiração já se ocupava de oxigenar o corpo, como que preparando cada músculo para um possível perigo. Porém a garagem, o fundo da casa e tudo o mais continuavam como sempre.
   Eis que dando-me conta de quantas vezes aquilo já havia ocorrido, percebi que possivelmente havia ali um exagero da minha parte, e talvez o perigo era meramente coisa da minha cabeça (o que naquela circunstância nada significava) e por fim, não aconteceria algo diferente mais uma vez. Poderia continuar a sonhar, quem sabe um daqueles sonhos em que se voa, sempre agradáveis.
   Naquela noite não podia estar mais errado. Do corredor traseiro da casa surge a alguma altura do chão a criatura assustadoramente esperada, e ele sim voando, num rasante deslizando-se em minha direção. Nessas horas é preciso correr. Saí dali em direção a porta da casa. Não foi sem surpresa que observei que por ali estavam alguns membros da minha família, e é claro nenhum com a mínima disposição para me ajudar naquela situação pavorosa. Continuei rumando para dentro da casa, na esperança cega e alienada de quê do lado de dentro havia segurança. Nunca saberia, pois ao puxar a grande porta de metal, finalmente a criatura que por tantas noites não dera a cara, me agarrou antes que eu colocasse os pés para dentro, e me lançou para fora da casa, para fora do sonho, para fora. 
   Nunca mais estive naquela situação, quem sabe porque a criatura estava satisfeita com seu susto final, em como deixara a criança apavorada e como não dera chances ao garoto. Seu rasante perfeito e direto. Sua garra precisa. É... Talvez isso, ou simplesmente por que agora, eu que ainda tinha dúvidas naquela noite, não podia mais negar a existência do meu monstro e a dolorida solidão com que se é obrigado a lidar com o dito cujo.