terça-feira, 22 de outubro de 2013

Bendito

  Como deixar bem dito? Aquilo que não se pode simplesmente dizer, seja por vergonha, coerência ou bom senso. Seja por dor, amor ou impedimento legal. As palavras tem sua própria lei, seus próprios limites, ainda que amplamente esticáveis. O velho escritor pousou o copo de água e abriu seu novo computador, desses que dá pra levar na pasta. Havia aprendido a usar com a dificuldade das pessoas desinteressadas, e unicamente por esse motivo demorou certo tempo para aprender a ligá-lo. Só vencera o desinteresse por que sua Olivetti Valentine estava com um defeito irrecuperável, o barulho dela incomodava em demasiado sua senhora, ela gritava do quarto, "cala-te esse diabo vermelho, por Deus". O casamento é mais importante, então, teve que se arriscar nas novas tecnologias. Quanto a seu aprendizado tortuoso, recusava-se a culpar a idade, subterfúgio da tantos outros amigos.  Ele poderia aprender quase qualquer coisa que quisesse... Conhecia o segredo das palavras e isso dava alguns passos de vantagem contra qualquer adversário. Apesar de tudo isso, era da sua boca que saía aquela pergunta. Como deixar bem dito?  Tal questão o perseguia com a voracidade de uma besta, não uma qualquer, mas uma com o poder de se transformar no decorrer do tempo para sempre preservar sua essência. Antigas questões devem ter um fim?
  Apertou os olhos na última frase que escrevera. Sentiu o coração palpitar. Enrubesceu. Será que finalmente era aquilo? Seu corpo começou a estremecer, quis gritar sua esposa, quis pular de alegria. Finalmente a fera que o perseguia parecia ter ficado para trás. Leu novamente, eram palavras simples e dispostas de maneira clara, porém no que uma tocava a outra, com seus significados, algo incrível se materializava. Aquilo que o velho sempre queria ter dito. E da maneira como gostaria. Tudo perfeito. Levantou ligeiro com todo o seu corpo uivando. Tombou sobre seu laptop esparramando a água e despedaçando a máquina no chão. Quando sua mulher chegou até o escritório quis gritar e chorar, o que seria esperado, mas o semblante do seu homem, deitado no chão inerte, a confortou.

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

A maldição do terceiro olho

    Todo dia ao abrir os olhos ela não podia resistir á insistência do destino em se fazer revelar, como um quadro nítido o futuro se desnudava diante da sua vista. Mas só as partes mais negras. Isso podia bastar, afinal, não é todo o saber que se pode sonhar? A chance de evitar o que havia de pior. Pular o caminho da dor. Salvar vidas como um herói. Ela corria contar, mas todos, presos demais ao chão que lhe sustentam não podiam crer nas palavras dela, por medo ou fraqueza, não importa. Cidades dizimadas por pragas vorazes e vinganças naturais. E eles riam. A morte dura e fora de hora das pessoas amadas. O sinal da Cruz pra deixar aquilo pra lá. Não importava a mazela que saía dos seus lábios, simplesmente não podiam acreditar. A moça viu seu poder tornar-se opaco, de que adianta seu terceiro olho se não podia convencê-los, se nada podia fazer com isso? Por fim entendeu que se tratava de uma maldição e não de um dom. Deus não é culpado de facilitar as coisas. Restava viver sabendo da desgraça que preenche os intervalos da vida e sofrer na sua espera.
   
   Certo dia abriu os olhos e, como sempre... Soube. E dessa vez era do seu destino que se tratava, o dele e o dela. Riu delirantemente triste, imaginando a reação. O que ele iria dizer? O que ele iria fazer quando soubesse?
    
   Contou na espera que alguém finalmente acreditasse nela, tinha de ser ele.
  
  Olhos nos olhos revelou que naquela manhã havia visto, com a costumeira clareza, que jamais dividiriam uma febre, jamais misturariam seus cheiros e suor, nem por um dia sequer. Ela nunca o teria sobre seu corpo ou o veria retirando suas roupas delicadamente e com amor. Seus sabores ficariam velados um para o outro, para sempre. O destino já apartara seus corpos num motim traiçoeiro e não havia o que se fazer.
Ao terminar nada se ouvia que não fosse a respiração de ambos. Ele não riu. Não fez sinal da Cruz. Focou a pupila dela e a sua doce aflição. Suspirou. Mas naquilo ele não podia acreditar.

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Preto

Filho de pai branco e mãe negra. Nasci branco. E fui ficando negro. Atingi o máximo da minha negritude sob o sol da capital cuiabana. E embranqueci de novo sob as nuvens da capital curitibana. Já escutei que sou preto, negro, moreno, que não sou negro, que não sou da cor de um pneu, que sou cor de cuia. E até que sou branco... É verdade. Tá lá na minha certidão de nascimento. Gosto de rock, gosto de samba. Misturo rock com samba. Sonho em dançar capoeira. Casei com uma branca de olhos azuis esverdeados, ou verdes azulados.
Na infância tive três irmãos, um preto e dois brancos. Um ainda por cima era Alemão. Apenas o preto dividia a mãe e o pai comigo. 
Se me perguntam sou negro sem pensar muito. Mais por posição política. Por que não se pode perder a oportunidade de lutar uma batalha dessas. Aguardo o tempo em que essa resposta não seja relevante tanto quanto no fundo não é. Tenho histórias de preconceito em várias gerações da minha família. Por isso me forço em direção à guerra, freqüentemente abismado com a necessidade dessa luta. E se há uma guerra não me furtarei de escolher um lado. Minha cor? Oras, Preta.