sexta-feira, 25 de agosto de 2017

O último sol de Noel

Impressionante o silêncio do seu caminhar pelo assoalho. Fazia parte da cena, o sol encontra uma viela se esgueirando em luz pela cortina. E ele está diante dele, como se pudesse superá-lo em majestade, a pupila, uma pincelada, um risco no azul brilhante dos seus olhos. Encara a vida exatamente pelo que ela é, não lhe resta outra coisa, a natureza quis assim, se há dor, são de outros corações.

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

A dívida subjetiva



O assunto da dívida social, dependendo do círculo em que a conversa se desenrola é assunto vencido. Mas não é bem assim para quem compartilha, sem fazer questão ou crítica, dos valores mais vulgares, isto é, mais comuns em nossa sociedade. Refiro-me aos valores da competição e do mérito. 
(Um adendo: trata-se de “demonizar” a meritocracia e o modelo que preza pela competição? Lógico que não. Ela funciona perfeitamente em certos ambientes e contextos. Mas é inteligente considerarmos que é um conceito limitado como qualquer um. É esse limite que estou tentando apontar).
Bom, penso que a ideia de dívida social já é suficientemente justificada do ponto de vista material, em outras palavras, historicamente algumas famílias ou territórios tiveram “facilidades” que outros não tiveram; uns imigraram e ganharam terras, outros foram escravizados; alguns territórios foram explorados, outros desenvolvidos; famílias enriqueceram pelas ligações políticas que tinham, enquanto outras se viram totalmente sem amparo; uns acumularam riquezas e outros trabalharam apenas para sobreviverem; e assim por diante. Qualquer um que negue isso, o faz por deixar de fora da equação um fator e a sua relevância para o modo de distribuição da riqueza, refiro-me ao fator “história”.
De todo modo gostaria de abordar a dívida por outro ponto de vista, o da subjetividade. Justifico o caminho, pois tenho me deparado com os seguintes argumentos em favor da meritocracia: minha família era pobre e batalhou e hoje vive melhor; basta ter força de vontade; as oportunidades estão aí; talvez o pobre nunca seja milionário, mas pode perfeitamente superar a posição que está; e outros argumentos na mesma linha que situam algo realmente verdadeiro, isto é, é possível se desenvolver em uma sociedade como a nossa. Percebam que são argumentos que individualizam um processo que não diz respeito só ao indivíduo, mas eu aceito o desafio de tratar do problema olhando-o sob o mesmo ponto de vista – embora não se possa jamais esquecer que a pobreza é fenômeno coletivo muitas pessoas ainda não conseguem entender esse paradigma. Bem, voltando aos argumentos, é irrefutável que alguém pode se desenvolver e até enriquecer, entretanto, há uma pequena questãozinha aí, subjetiva, que vem engrossar o que já descrevi no parágrafo acima.
Qualquer teoria psicológica séria não pode deixar de reconhecer o fator social na constituição da subjetividade, ele aparece hora com maior destaque como nas teorias Socio-Históricas ou com menor destaque como no Behaviorismo, mas está lá. A Psicanálise, voltada totalmente para o indivíduo, não só conta com linhas totalmente sociais (na América Latina), como podemos encontrar, nos próprios textos freudianos, a relevância que a Cultura tem na formação do psiquismo, Freud dedicou várias obras ao assunto. Retomo isso para dizer que é extremamente seguro afirmar que nossa subjetividade é resultado, em parte, da construção social, da história que nos precede e de como isso é transmitido ao sujeito por aqueles que o rodeiam... Isto é, pela sua família, amigos, vizinhos e etc. É nesse ponto que há um nó indissolúvel entre o que é da “experiência individual” e o que é da “experiência coletiva” (social).
O fato é que se eu sou resultado das minhas experiências individuais e do campo social em que estou inserido – lembrando que estão enlaçados – as minhas aspirações, a maneira como entendo o mundo, os meus sonhos, os meus desejos, carregam irrevogavelmente, a marca da minha história, história essa que me ultrapassa, que é a história dos meus pais, avôs e assim por diante. Não passa de um delírio de grandeza do Eu, imaginar que a forma como pensamos é nova, original, sem nenhuma influência externa. Ouçam bem, influência! Não estou falando em determinação.
Se admitirmos então que a história e o meio social influenciam nosso modo de pensar, o que se pode dizer de alguém que tem na história de sua família toda uma sucessão de violações de direitos, alguém que no seio de sua família nunca houve compartilhamento de valores como o da “educação”. Uma família que teve toda uma vivência de horror ao trabalho, tendo em vista as tarefas indignas a que foram sujeitadas. Uma família que não pôde desempenhar sua função protetiva, por que faltavam recursos e o estado não pôde prover, por exemplo, faltando vaga na creche. Crianças sem estímulo, sendo criadas por outras crianças, ou sabe lá por quem mais. Vulneráveis a toda sorte de violências, sejam físicas, psicológicas e sexuais. Quando falamos de miséria, de pobreza extrema, falamos do pacote completo. Não se trata só de uma renda baixa, mas do quanto uma renda extremamente baixa desprotege, expõe, torna vulnerável um sujeito, aparta-o de receber todo um arcabouço simbólico, e um sujeito ainda em formação será influenciado por todo esse contexto, que é de sua experiência individual, mas que se liga de maneira intrínseca ao fato de a riqueza se concentrar de maneira desigual.
O valor da educação, do trabalho ou da cidadania, portanto, não são naturais, espontâneos, mas sim transmitidos de algum modo, A transmissão pode vir de qualquer um, desde que esse um tenha a transmitir. E há quem não tenha, pois nunca pôde receber. E aqui chegamos finalmente na dívida. Por que se não tem para doar é provável que seja por que alguém um dia lhe tirou ou tirou as condições de que isso fosse formado. Afinal, é estatisticamente relevante dizer que famílias com tempo, tranquilidade financeira, mais livres da violência, morando em territórios mais desenvolvidos, têm muito mais facilidade de se encaixar nos valores correntes da sociedade do que as que não gozam de situação tão confortável.
Na medida em que há, na nossa história, grupos de pessoas que foram apartadas de direitos básicos, geração à geração, convencidos a acreditar que não podiam mudar sua realidade, como é possível imaginar que o sujeito, resultado deste processo extenso, seja sempre alguém pronto para quebrar com sua situação de assujeitamento, alguém que vai romper com o ciclo de pobreza que é a herança de sua família. Aqui está a dívida, não vou dizer só do Estado, mas a dívida da civilização para com essas pessoas, e aqui não consigo continuar com o ponto de vista individual, afinal, não estamos falando de um ou dois, mas sim de um fenômeno, o fenômeno da pobreza  - vale o mesmo para a violência – que é indubitavelmente hereditário, como eu dizia, “transmitido”. Só convivemos com o alto índice desses “fenômenos” por que a civilização se desenvolveu de forma desigual, uns explorando outros, uns escravizando outros. E isso determinou por que hoje a riqueza está ali e não acolá. Por exemplo, muitas famílias possuem riquezas hoje que são resultadas da exploração do trabalho escravo, e este escravo, seus descendentes estão em grande parte na pobreza. Alguém com um mínimo de coerência vê justiça nisso? O quanto da riqueza de nosso país não tem raiz neste tipo de exploração?
Bem, não dá para voltar atrás. Então é preciso começar a saldar a dívida e diminuir a incidência desses “fenômenos”. Voltando ao campo individual e subjetivo – que é o que me propus a utilizar nesse texto – depois de tirar por anos e anos toda a esperança e condição de crescer, não dá para simplesmente chegar agora e dizer, “vamos competir, e seu mérito será recompensado”. Não se comprometer, achar que nada temos a ver com isso e afirmar de maneira categórica que o sujeito está naquela situação apenas por que escolheu é, a partir do momento que consideramos tudo isso, uma atitude cínica. Quantos escolheriam a mesma coisa se não tivessem alguém em sua história quem lhe transmitisse outros desejos? Alguém que lhe desse mais armas para entrar nessa “competição”?
O mérito funciona muito bem em alguns ambientes, mas num contexto em que o básico falta, esse conceito é de uma crueldade e desumanidade que chega a doer. Além do mais, usá-lo quando não há igualdade de condições é um modo de manter tudo igual, manter a riqueza exatamente onde ela está, negros exatamente onde estão, mulheres idem. Isso nos conduz a um argumento pragmático: Você defende que negros/mulheres não são inferiores a brancos/homens? Se a resposta é “sim”, então é preciso fazer algo, pois no momento não há essa igualdade. Negar essa diferença é manter um grupo inferior ao outro (em salário, em condições de vida, na forma que a sociedade o vê, em seus direitos básicos).
                É importante dizer que considerar a dívida social não é igual a pensar que as pessoas não devem ser responsabilizadas por suas decisões, que são “coitadinhas”, não é igual a dizer que uns são menos capazes que outros, considerar a dívida é saber que a sociedade precisa desenvolver mecanismos que trabalhem para que não haja nenhuma forma de discriminação no futuro, é saber que se não há intervenção, as diferenças tendem a se manter no tempo.
Admitida a dívida, o que fazer com ela é uma questão. Como tento responder sempre de maneira ética, excluo a possibilidade do calote. No entanto, como penso que se salda essa dívida é assunto para outro dia... E é assunto até mais polêmico.

terça-feira, 28 de julho de 2015

Sobre o "Orgulho de ser CIC"



Prólogo
 
*A Cidade Industrial de Curitiba (CIC) é o maior bairro da capital paranaense em número de população. Inicia sua história nos anos 70, com a destinação de seu território para a construção de um distrito industrial no município.  Atualmente ainda possui muitas regiões não regularizadas, resultado de ocupações e recebe com frequência, projetos de relocação. Neste território está um dos primeiros projetos de moradia popular do Brasil, a Vila Nossa Senhora da Luz.
Recentemente a Administração Regional da CIC, estrutura responsável por organizar as políticas municipais na região, lançou uma “campanha” chamada Orgulho de ser CIC, a qual a repercussão em meu próprio modo de ver o território teve como consequência o texto que se segue.



Sobre o orgulho de ser CIC


Trabalho numa região conhecida por ser um lugar a se evitar, por suas péssimas condições de vida, pelos diversos bolsões de pobreza em sua extensão. Como não é de se estranhar, sendo um local no qual as condições sociais são precárias, também está aqui um dos maiores índices de violência... Por que teríamos orgulho de ser CIC?
É evidente que não é a toa as representações negativas ligadas a esse território, mas como se desencadeia uma mudança? Com políticas voltadas à população: de educação, moradia, saúde, trabalho, cultura... Entretanto, nesse caminho, já difícil o bastante, eis que nos deparamos com um obstáculo que vem a se somar com todos os outros: a exclusão social veiculada através da palavra, do nome, CIC. Como se esse fosse um sinônimo de algo necessariamente ruim, naturalmente horrível, ao ponto de uma pessoa ligada a essa palavra adquirir por proximidade cada um desses adjetivos. Exemplifica essa constatação alguns fatos: pouquíssimo dos trabalhadores das empresas da CIC são moradores do território; há uma intensa rejeição de trabalhadores/servidores a trabalharem na região; são inúmeros os relatos de cidadãos que foram discriminados ao se declararem moradores da CIC; é muito freqüente que moradores de áreas da CIC mais próximas de outros bairros, assumam a região vizinha como denominação de seu território. Enfim, ao que tudo indica ser CIC não costuma ser orgulho para essas pessoas. E é por isso mesmo que afirmá-lo comporta uma dimensão radical, ou melhor radicalizante, revolucionária, por que não.
O orgulho de ser CIC é uma oposição ao que está constituído como tal, é um não a criminalização da pobreza, um não a discriminação que apenas serve para a manutenção do status quo. Dizer que há um orgulho em ser CIC é fazer um voto a uma nova CIC, superando a fuga como única esperança, e assumindo o comprometimento com a transformação, sem jamais negar os problemas que se multiplicam nessa região.
É por tudo isso que a mudança da CIC, que obviamente depende de uma alteração material de suas condições, também precisa ser acompanhada de uma nova postura em relação ao território que também é parte do que somos, seja como morador, seja como trabalhador. É nessa perspectiva, por reconhecer a força das pessoas que aqui estão e a energia transformadora que emana das construções simbólicas como essa, pelo respeito às histórias que ouvimos e por ser parte disso, que só posso afirmar que sou um daqueles que tem orgulho de ser CIC.
Que seja um convite aos moradores, trabalhadores, servidores, donos de empresa, para que experimentem esse sentimento e apostem na transformação. E se algo do que foi dito aqui servir para outros territórios que, por favor, se sirvam.
 

segunda-feira, 29 de junho de 2015

Direitos humanos para nos tornarmos humanos

    Os humanos, enfim, alcançaram um patamar de civilidade, desenvolvimento científico e tecnológico que os fizeram crer que a razão agora era senhora e eixo consistente no seio da sociedade. E sendo assim, não era mais necessário partir para atos primitivos, violentos, identificados como comportamentos irracionais, animalescos. Éramos “homens civilizados”.
     Eles estavam errados. Uma seguida, da outra, as guerras mundiais foram tapas na cara, água no chope, foi como se o rosto que se apresentava no espelho causasse surpresa a quem se olhava. Não havia mais como fugir, as pessoas eram aquilo: violentas, agressivas, irracionais, dadas aos atos mais bestiais, estupros, roubos, torturas. E pior, eram capazes de institucionalizar a violência como ato justificável. Os avanços culturais ainda não eram suficientes.  Ainda éramos animais.
    O que fazer diante dessa realidade? Diante do ódio, qual a resposta? Essa sociedade humana optou por uma resposta de amor. A Declaração de Direitos Humanos é essa resposta. Se somos capazes de reduzir-nos uns aos outros a objetos de sadismo, de injustiça, de ódio, é preciso garantir uma luta permanente contra nossos próprios horrores. É por essa razão, isto é, por que somos capazes de nos destruir e por que somos capazes de criar os argumentos mais morais – e até científicos – para justificar nossa destruição, que é essencial a resistência permanente em favor do respeito aos direitos humanos, especialmente onde a violência passa a ser ato cada vez mais justificado.
     Somos tantas nações, tantas paixões, tantas crenças e interesses. Mas, nada, nada disso deve ser motivo para ultrapassar o que ali está firmado, por que ali está o que há de mais básico em termos de direitos. A partir dessa declaração é possível colocar em questão e julgar qualquer evento que a contrarie, estabelecendo limites aos estados, leis, religiões, manifestações culturais etc. Talvez não seja o bastante, porém é um passo importante, um passo de palavra.
    Muitos ainda não entendem a importância da defesa dos Direitos Humanos, mas é por que não se deram conta disso que os homens daquela época não tiveram dúvidas... Ou talvez não... Talvez não saibam que é inócuo responder ódio com mais ódio. Enfim, decididamente ainda não se deram conta que é da nossa própria violência que se trata. Trata-se do que sou capaz.