segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

    Quanto mais cavo, menos sinto falta da religião e da espiritualidade. Mantenho a fé... Nas pessoas, nas mudanças ainda que lentas. Tenho os meus ritos, demasiadamente humanos e com sentidos particulares. No meu altar os santos são homens, pecadores, não são ideais, é gente que soube fazer algo – uma coisa que seja – muito bem. Artistas, cientistas, loucos.  Lá há mais melodias do que imagens. Minha oração é uma canção, em outros dias é outra, e assim vai conforme tocam meus sentimentos. Meus irmãos não dividem a mesma crença, não precisam ser iguais, embora não deixamos de sermos naturalmente. Diante do oco da vida, do que nos desespera, não recorro a Deus, mas ao mistério da vida humana, do mundo que nos determina, e da finitude irremediável. Espero um dia aceitar definitivamente o fim, a quem o aceita não há dor que tire a importância da vida, não há sofrimento capaz de diminuir a imensidão.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

A Triste História do Cão


    A triste história do cão. Cresceu em torno da gurizada, de pequeno a grande, dócil como um filhote. Lambuzava a boca com comida de cachorro e vinha correndo lamber a cara dos meninos. O último a se levantar vencia o jogo. O cão vivia pelo quintal e de fato, cresceu bastante, virou um cachorrão. Cuidava da casa da família e prestava o carinho necessário. Parecia feliz.
    Um dia o menino brigou com a mãe e foi correndo para o quintal, gritando, chorando, fazendo um escarcéu. Não se soube bem se pelo barulho, adrenalina, ou o quê, afinal, os animais não prestam esclarecimentos sobre seus atos, mas o cão se aproximou e num salto violento atingiu o pescoço do menino. Quase lhe partiu a orelha. O estrago foi grande. Quem poderia imaginar que atrás da docilidade se escondia tamanha fera? Quase matara o garoto. E por pouco não se foi ele, executado de raiva pelo 38 do avô.
    Tudo então mudou. O cão foi para o canil, construído a maneira de uma solitária. Não via mais gente, não lambia mais a gurizada. Esperava a noite para voltar ao quintal e no amanhecer voltava à prisão. Anos se passaram e a partir dali foi se transformando. Se havia uma disputa entre seu lado dócil e seu lado violento, o último levou a melhor. Tornara-se pura agressividade. Temido e tido como traiçoeiro, deixava um rastro de ataques na sua história. Quase matou o vô, quase arrancou o dedo do rapaz. Com os pelos longos parecia um leão, imponente, cruel, aterrorizante.
    Como a vida vem e vai, um dia, de velho, finalmente se foi. Nunca mais seria esquecido, tal sua violência marcante, lembrado pelas cicatrizes nos corpos que cruzaram o seu caminho. Mas, felizmente, não só por isso seria lembrado, mas também por que ensinara algo a um dos garotos lambidos. Uma lição importante sobre agressividade, sobre como ela subjaz adormecida: se estava no cão, também estava na solitária, na pena pela mordida. O garoto lambido que ao visitar a avó fazia questão de falar com o cão, atrás das grades, e sem se atrever a encostar na fera, quis escrever sobre assunto, perguntava de que é feito um monstro. E, por fim, pensou, quem sabe ser um monstro dependa do fato de se ter a alcunha.