O assunto da
dívida social, dependendo do círculo em que a conversa se desenrola é assunto
vencido. Mas não é bem assim para quem compartilha, sem fazer questão ou
crítica, dos valores mais vulgares, isto é, mais comuns em nossa sociedade. Refiro-me
aos valores da competição e do mérito.
(Um adendo:
trata-se de “demonizar” a meritocracia e o modelo que preza pela competição?
Lógico que não. Ela funciona perfeitamente em certos ambientes e contextos. Mas
é inteligente considerarmos que é um conceito limitado como qualquer um. É esse
limite que estou tentando apontar).
Bom, penso que
a ideia de dívida social já é suficientemente justificada do ponto de vista
material, em outras palavras, historicamente algumas famílias ou territórios
tiveram “facilidades” que outros não tiveram; uns imigraram e ganharam terras,
outros foram escravizados; alguns territórios foram explorados, outros
desenvolvidos; famílias enriqueceram pelas ligações políticas que tinham,
enquanto outras se viram totalmente sem amparo; uns acumularam riquezas e
outros trabalharam apenas para sobreviverem; e assim por diante. Qualquer um
que negue isso, o faz por deixar de fora da equação um fator e a sua relevância
para o modo de distribuição da riqueza, refiro-me ao fator “história”.
De todo modo
gostaria de abordar a dívida por outro ponto de vista, o da subjetividade.
Justifico o caminho, pois tenho me deparado com os seguintes argumentos em
favor da meritocracia: minha família era pobre e batalhou e hoje vive melhor;
basta ter força de vontade; as oportunidades estão aí; talvez o pobre nunca
seja milionário, mas pode perfeitamente superar a posição que está; e outros
argumentos na mesma linha que situam algo realmente verdadeiro, isto é, é
possível se desenvolver em uma sociedade como a nossa. Percebam que são
argumentos que individualizam um processo que não diz respeito só ao indivíduo,
mas eu aceito o desafio de tratar do problema olhando-o sob o mesmo ponto de
vista – embora não se possa jamais esquecer que a pobreza é fenômeno coletivo muitas
pessoas ainda não conseguem entender esse paradigma. Bem, voltando aos
argumentos, é irrefutável que alguém pode se desenvolver e até enriquecer,
entretanto, há uma pequena questãozinha aí, subjetiva, que vem engrossar o que
já descrevi no parágrafo acima.
Qualquer
teoria psicológica séria não pode deixar de reconhecer o fator social na
constituição da subjetividade, ele aparece hora com maior destaque como nas
teorias Socio-Históricas ou com menor destaque como no Behaviorismo, mas está
lá. A Psicanálise, voltada
totalmente para o indivíduo, não só conta com linhas totalmente sociais (na
América Latina), como podemos encontrar, nos próprios textos freudianos, a
relevância que a Cultura tem na formação do psiquismo, Freud dedicou várias
obras ao assunto. Retomo isso para dizer que é extremamente seguro afirmar que
nossa subjetividade é resultado, em parte, da construção social, da história
que nos precede e de como isso é transmitido ao sujeito por aqueles que o
rodeiam... Isto é, pela sua família, amigos, vizinhos e etc. É nesse ponto que
há um nó indissolúvel entre o que é da “experiência individual” e o que é da
“experiência coletiva” (social).
O fato é que
se eu sou resultado das minhas experiências individuais e do campo social em
que estou inserido – lembrando que estão enlaçados – as minhas aspirações, a
maneira como entendo o mundo, os meus sonhos, os meus desejos, carregam
irrevogavelmente, a marca da minha história, história essa que me ultrapassa, que
é a história dos meus pais, avôs e assim por diante. Não passa de um delírio de
grandeza do Eu, imaginar que a forma
como pensamos é nova, original, sem nenhuma influência externa. Ouçam bem, influência! Não estou falando em
determinação.
Se admitirmos
então que a história e o meio social influenciam nosso modo de pensar, o que se
pode dizer de alguém que tem na história de sua família toda uma sucessão de
violações de direitos, alguém que no seio de sua família nunca houve
compartilhamento de valores como o da “educação”. Uma família que teve toda uma
vivência de horror ao trabalho, tendo em vista as tarefas indignas a que foram
sujeitadas. Uma família que não pôde desempenhar sua função protetiva, por que
faltavam recursos e o estado não pôde prover, por exemplo, faltando vaga na
creche. Crianças sem estímulo, sendo criadas por outras crianças, ou sabe lá
por quem mais. Vulneráveis a toda sorte de violências, sejam físicas,
psicológicas e sexuais. Quando falamos de miséria, de pobreza extrema, falamos
do pacote completo. Não se trata só de uma renda baixa, mas do quanto uma renda
extremamente baixa desprotege, expõe, torna vulnerável um sujeito, aparta-o de
receber todo um arcabouço simbólico, e um sujeito ainda em formação será
influenciado por todo esse contexto, que é de sua experiência individual, mas
que se liga de maneira intrínseca ao fato de a riqueza se concentrar de maneira
desigual.
O valor da
educação, do trabalho ou da cidadania, portanto, não são naturais, espontâneos,
mas sim transmitidos de algum modo, A transmissão pode vir de qualquer um,
desde que esse um tenha a transmitir. E há quem não tenha, pois nunca pôde
receber. E aqui chegamos finalmente na dívida. Por que se não tem para doar é
provável que seja por que alguém um dia lhe tirou ou tirou as condições de que
isso fosse formado. Afinal, é estatisticamente relevante dizer que famílias com
tempo, tranquilidade financeira, mais livres da violência, morando em
territórios mais desenvolvidos, têm muito mais facilidade de se encaixar nos
valores correntes da sociedade do que as que não gozam de situação tão
confortável.
Na medida em
que há, na nossa história, grupos de pessoas que foram apartadas de direitos
básicos, geração à geração, convencidos a acreditar que não podiam mudar sua
realidade, como é possível imaginar que o sujeito, resultado deste processo
extenso, seja sempre alguém pronto para quebrar com sua situação de
assujeitamento, alguém que vai romper com o ciclo de pobreza que é a herança de
sua família. Aqui está a dívida, não vou dizer só do Estado, mas a dívida da
civilização para com essas pessoas, e aqui não consigo continuar com o ponto de
vista individual, afinal, não estamos falando de um ou dois, mas sim de um
fenômeno, o fenômeno da pobreza - vale o
mesmo para a violência – que é indubitavelmente hereditário, como eu dizia,
“transmitido”. Só convivemos com o alto índice desses “fenômenos” por que a
civilização se desenvolveu de forma desigual, uns explorando outros, uns
escravizando outros. E isso determinou por que hoje a riqueza está ali e não acolá. Por exemplo, muitas famílias possuem riquezas hoje que são
resultadas da exploração do trabalho escravo, e este escravo, seus descendentes
estão em grande parte na pobreza. Alguém com um mínimo de coerência vê justiça
nisso? O quanto da riqueza de nosso país não tem raiz neste tipo de exploração?
Bem, não dá
para voltar atrás. Então é preciso começar a saldar a dívida e diminuir a
incidência desses “fenômenos”. Voltando ao campo individual e subjetivo – que é
o que me propus a utilizar nesse texto – depois de tirar por anos e anos toda a
esperança e condição de crescer, não dá para simplesmente chegar agora e dizer,
“vamos competir, e seu mérito será recompensado”. Não se comprometer, achar que
nada temos a ver com isso e afirmar de maneira categórica que o sujeito está
naquela situação apenas por que escolheu é, a partir do momento que
consideramos tudo isso, uma atitude cínica. Quantos escolheriam a mesma coisa
se não tivessem alguém em sua história quem lhe transmitisse outros desejos?
Alguém que lhe desse mais armas para entrar nessa “competição”?
O mérito
funciona muito bem em alguns ambientes, mas num contexto em que o básico falta,
esse conceito é de uma crueldade e desumanidade que chega a doer. Além do mais,
usá-lo quando não há igualdade de condições é um modo de manter tudo igual,
manter a riqueza exatamente onde ela está, negros exatamente onde estão,
mulheres idem. Isso nos conduz a um argumento pragmático: Você defende que negros/mulheres
não são inferiores a brancos/homens? Se a resposta é “sim”, então é preciso
fazer algo, pois no momento não há essa igualdade. Negar essa diferença é
manter um grupo inferior ao outro (em salário, em condições de vida, na forma
que a sociedade o vê, em seus direitos básicos).
É
importante dizer que considerar a dívida social não é igual a pensar que as
pessoas não devem ser responsabilizadas por suas decisões, que são
“coitadinhas”, não é igual a dizer que uns são menos capazes que outros, considerar
a dívida é saber que a sociedade precisa desenvolver mecanismos que trabalhem
para que não haja nenhuma forma de discriminação no futuro, é saber que se não
há intervenção, as diferenças tendem a se manter no tempo.
Admitida a
dívida, o que fazer com ela é uma questão. Como tento responder sempre de
maneira ética, excluo a possibilidade do calote. No entanto, como penso que se
salda essa dívida é assunto para outro dia... E é assunto até mais polêmico.