segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Com respeito aos gatos

Meu pai sempre odiou os gatos que ficaram na casa. Eram dois. Os antigos moradores fizeram o favor de deixá-los e ali eles ficaram. Sabe-se bem do apego dos bichanos pelo lar, era tanto que de nada adiantava os corridões e maus tratos que nosso pai dedicava àqueles bichos. Estes corriam e subiam no telhado fazer ninho, despreocupados, senhores, como antigos donos que eram daquela casa. Meu pai se queixava e praguejava... Os gatos continuavam indiferentes. A indiferença, o egoísmo e a arrogância felina são conhecidos, mas essa história é sobre outras qualidades dos gatos, enfim, é sobre, como devo a minha vida a um bichano desse, indiferente, egoísta e arrogante.
Era dia quente em Guiratinga, chego a sentir a textura da bacia de metal, a qual servia de piscina naquela tarde. Provavelmente eu dava aqueles tapinhas na superfície da água e gritava feito um bebê, esparramando minha alegria infantil pelo chão de cimento. Em pé, a moça que me cuidava lavava algumas peças de roupa no tanque, assobiava alguma canção imprópria para crianças. Um dos gatos caminhava por ali aproveitando que meu pai estava dentro de casa, provavelmente escutando música. O felino se lambia e aproveitava a folga para caçar alguns insetos, afinal, a vida não estava sendo fácil desde a partida dos donos. E como ainda não tínhamos o Kid, o quintal estava livre.
Eu ali na bacia mal sabia o que era gato, o que era bacia e muito menos do risco que representava outro tipo de animal, que agora se escorregava em minha direção. Anos depois na escola, ouvi atentamente a professora de Ciências explicando que dependendo da forma da cabeça, do rabo e das cores é possível de antemão prever o tamanho do perigo. E algumas cobras são um tanto temperamentais.
Lógico, o risco poderia não ser tão grande, afinal minha cuidadora estava bem pertinho, já está até vendo o bicho, agora é só ela me pegar e correr para dentro. Era simples. Não costuma ser uma boa idéia largar um bebê e uma cobra peçonhenta no mesmo ambiente, porém, o medo não costuma ser testemunha das ações mais coerentes e conscienciosas. Pronto, agora tínhamos de um lado um bebê e de outro uma cobra. Ainda dava para ouvir os berros da babá ficando cada vez mais distantes.
Acabou que muito cedo na vida presenciei, embora não me lembre absolutamente de nada, a beleza da coragem felina. Talvez tenha sido meu primeiro filme de herói, que eu assisti ali, ao vivo. O intrépido bichano se atravessou entre mim e o animal deslizante. E com a agilidade própria a sua espécie, se desviava dos ataques violentos, não sem antes acertar patadas intimidadoras na cobra. Nesse vai-e-vem concentrou a disputa. Por alguns minutos manteve a distância necessária entre o humano bobo e indefeso e a morte certa.
Não sei por quanto tempo o gato conseguiria segurar aquele animal tão feroz. Mas foi irônico quando por trás da cena, no momento exato e necessário, eis que surgiu o fiel parceiro do herói, meu pai, e atingiu mortalmente a cobra enquanto esta se encontrava completamente distraída pelos ataques do mamífero, salvando ambos, o gato e o bebê, e mostrando que, homem e gato, eram muito melhores juntos.
Os olhos do meu pai não podiam acreditar na cena que via. Ainda ofegante contemplou o herói do dia. Ainda eriçado o bichano levantou o focinho, devia saber que aquilo se tratava de um cessar fogo entre os dois, e em seguida continuou sua caça por insetos como se nada tivesse acontecido.
O bebê sobreviveu, a babá foi demitida, e a família passou a contar com dois gatos. Eles viveram um bom tempo a pão de ló e bife e não mais sobre o teto, sim sob o teto. Um dia sumiram os dois, numa tarde de primavera, provavelmente em busca de outra aventura. E a marca da coragem aparentemente ficara, na lembrança, nas histórias do meu pai, e fora delas, cravada na criança.  

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