Meu pai sempre odiou os gatos que ficaram na casa. Eram dois. Os
antigos moradores fizeram o favor de deixá-los e ali eles ficaram.
Sabe-se bem do apego dos bichanos pelo lar, era tanto que de nada
adiantava os corridões e maus tratos que nosso pai dedicava àqueles
bichos. Estes corriam e subiam no telhado fazer ninho,
despreocupados, senhores, como antigos donos que eram daquela casa.
Meu pai se queixava e praguejava... Os gatos continuavam
indiferentes. A indiferença, o egoísmo e a arrogância felina são
conhecidos, mas essa história é sobre outras qualidades dos gatos,
enfim, é sobre, como devo a minha vida a um bichano desse,
indiferente, egoísta e arrogante.
Era dia quente em Guiratinga, chego a sentir a textura da bacia de
metal, a qual servia de piscina naquela tarde. Provavelmente eu dava
aqueles tapinhas na superfície da água e gritava feito um bebê,
esparramando minha alegria infantil pelo chão de cimento. Em pé, a
moça que me cuidava lavava algumas peças de roupa no tanque,
assobiava alguma canção imprópria para crianças. Um dos gatos
caminhava por ali aproveitando que meu pai estava dentro de casa,
provavelmente escutando música. O felino se lambia e aproveitava a
folga para caçar alguns insetos, afinal, a vida não estava sendo
fácil desde a partida dos donos. E como ainda não tínhamos o Kid,
o quintal estava livre.
Eu ali na bacia mal sabia o que era gato, o que era bacia e muito
menos do risco que representava outro tipo de animal, que agora se
escorregava em minha direção. Anos depois na escola, ouvi
atentamente a professora de Ciências explicando que dependendo da
forma da cabeça, do rabo e das cores é possível de antemão prever
o tamanho do perigo. E algumas cobras são um tanto temperamentais.
Lógico, o risco poderia não ser tão grande, afinal minha cuidadora
estava bem pertinho, já está até vendo o bicho, agora é só ela
me pegar e correr para dentro. Era simples. Não costuma ser uma boa
idéia largar um bebê e uma cobra peçonhenta no mesmo ambiente,
porém, o medo não costuma ser testemunha das ações mais coerentes
e conscienciosas. Pronto, agora tínhamos de um lado um bebê e de
outro uma cobra. Ainda dava para ouvir os berros da babá ficando
cada vez mais distantes.
Acabou que muito cedo na vida presenciei, embora não me lembre
absolutamente de nada, a beleza da coragem felina. Talvez tenha sido
meu primeiro filme de herói, que eu assisti ali, ao vivo. O
intrépido bichano se atravessou entre mim e o animal deslizante. E
com a agilidade própria a sua espécie, se desviava dos ataques
violentos, não sem antes acertar patadas intimidadoras na cobra.
Nesse vai-e-vem concentrou a disputa. Por alguns minutos manteve a
distância necessária entre o humano bobo e indefeso e a morte
certa.
Não sei por quanto tempo o gato conseguiria segurar aquele animal
tão feroz. Mas foi irônico quando por trás da cena, no momento
exato e necessário, eis que surgiu o fiel parceiro do herói,
meu pai, e atingiu mortalmente a cobra enquanto esta se encontrava
completamente distraída pelos ataques do mamífero, salvando ambos,
o gato e o bebê, e mostrando que, homem e gato, eram muito melhores
juntos.
Os olhos do meu pai não podiam acreditar na cena que via. Ainda
ofegante contemplou o herói do dia. Ainda eriçado o bichano
levantou o focinho, devia saber que aquilo se tratava de um cessar
fogo entre os dois, e em seguida continuou sua caça
por insetos como se nada tivesse acontecido.
O bebê sobreviveu, a babá foi demitida, e a família passou a
contar com dois gatos. Eles viveram um bom tempo a pão de ló e bife
e não mais sobre o teto, sim sob o teto. Um dia sumiram os dois,
numa tarde de primavera, provavelmente em busca de outra aventura. E
a marca da coragem aparentemente ficara, na lembrança, nas histórias
do meu pai, e fora delas, cravada na criança.
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