quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Por que piada contra negro não é tratada como piada contra gordo?

   Percebo uma dificuldade em uma parte grande de pessoas, de entender por que é que quando se trata de ofensas a negros tudo parece tão mais sério, afinal, o "gordo" também sofre, o "magrelo", ou mesmo o "branquelo", todos eles podem sofrer com xingamentos, e outras ofensas. Muitos parecem sinceramente confusos quanto a isso e quando se colocam, geralmente são acusados de racismo, o que os deixam ainda mais confusos - ou putos, já que "não tenho nada contra negros". Bem, se você é uma dessas pessoas e quiser finalmente compreender, não pode ter preguiça, pois a explicação exige sair do lugar comum.
   Primeiramente, deve-se partir do pressuposto que as razões para o que acontece extrapolam o campo individual, isto é, a gravidade da ofensa não é medida pela quantidade de constrangimento que um negro sente ao ouvi-la, não é essa a régua. Certos insultos a UM negro, sempre, sempre, dirão  respeito a todo coletivo de negros, e mais, reproduzirão uma ideia, um pensamento que a sociedade tem para com pessoas identificadas como negros ou de cor preta. Explicarei melhor adiante.
   Não é possível avançar no argumento sem se remeter a história, quase recente. Sim, recente, afinal, em um país que possui 514 anos, algo que aconteceu durante aproximadamente 388 anos não é tão longínquo. Me refiro ao período em que a escravidão era legalizada. E não podemos esquecer que ela continuou - será que acabou? - por muito tempo ainda, de maneira disfarçada. Logo, não é difícil concluir que suas consequências se fazem presente.
   Quando os negros foram arrancados das suas terras e transformados em escravos, a ideia que justificava tal prática, era que se tratavam de "humanos inferiores", "menos humanos", isto é, estariam "aos olhos de Deus" abaixo das pessoas de pele branca. Essa ideia de "seres inferiores", é o que cristalizou-se no sentido atrelado a palavra "macaco" - que é um animal que parece humano - e a outros insultos, ou a todos os insultos que se referem a cor escura da pele.
   Quando uma torcedora utiliza-se desta palavra com o intuito de ofender, ela, provavelmente sem se dar conta, reproduz toda a história de humilhação que o povo negro sofreu, coloca no presente, a crença que sustentou um dos maiores crimes já feitos contra a humanidade. Há um valor simbólico aí, que não pode ser descartado ou minimizado. O ato de xingar um negro de macaco, carrega o sentido mesmo da escravidão, sustenta o pensamento de que um homem é superior ao outro pelo tom de cor da sua pele. É preciso entender que a torcedora não quer escravizar o goleiro - não é do campo individual que se trata, lembram? - no entanto, ela reproduz um sentido social, que está ligado a história, e tal vínculo, ato-história é indissociável. É por esse mesmo motivo que queimar a casa dela não faz o menor sentido, afinal, não é exatamente ela quem é racista - imagino que essa moça não ache certo a escravidão, ou que negros são menos humanos e etc - mas, infelizmente, o ato dela, mostra que vivemos uma cultura racista. O indivíduo veicula essa cultura, e deve ser punido, na medida que essa punição sirva para mudar a nossa cultura, em minha humilde opinião, punir é até secundário nesse caso, melhor seria se usássemos o exemplo da torcedora para produzir novos valores - de certa maneira esse texto é minha pequeníssima contribuição nessa baila.
   Bom, em outras palavras, o que você, que não entende a gravidade de uma ofensa dessa, está ignorando, é, por um lado, o que podemos chamar de "mundo simbólico" - o fato de que um ato ou palavra, pode fazer referência a outro sentido, neste caso "xingar de macaco" automaticamente presentifica a "humilhação histórica sofrida pelos negros" e a "crença de que o negro é inferior" - e por outro lado, o quanto a aceitação do racismo é recente na história. Combinados, esses dois fatores dão peso gigantesco a qualquer tipo de ato que se ligue, ainda que de maneira débil e inconsciente, ao racismo. A mesma coisa vale para piadas que produzem o mesmo efeito. Portanto, o mal que você não vê em certos comentários, está lá, pois, há um sentido que se relaciona com a história de crueldade vivida pelo negro
   Se foi possível me acompanhar até aqui, por último, gostaria de dizer que apenas um negro, ou pessoa de cor preta, pode sentir a sutileza do lugar que ocupa em nossa cultura. Sentimos a influência em nosso próprio modo de pensar - muitas vezes reproduzimos a mesma cultura racista. É uma violência sutil - e ás vezes não. É por isso que quando você, que não se identifica, nem é identificado como negro, questiona se "não estão exagerando na crítica a atos de racismo", automaticamente é colocado no mesmo lugar que o agressor, por que você não está em condições de julgar isso, e seu questionamento é facilmente interpretável como "ato para manutenção do racismo" - e de fato adquire essa função - ainda que não seja sua intenção.

   Concluindo, ninguém precisa concordar com o que é ou não racismo, porém, eu espero que tenha conseguido mostrar em que plano penso que essa discussão deva ser colocada, que é o da história, que é o do coletivo, e não se a torcedora é ou não racista, ou se ele se ofendeu ou não com o xingamento. E o grande motivo pelo qual entendo que não se pode tolerar nenhum ato que faça referência ao "negro menos humano" é por que justamente,  é nítido que ainda não conseguimos superar a fina e pegajosa camada de pó que os anos de escravidão lançaram sobre nossa sociedade. Enquanto for assim, a sociedade será obrigada a forçar um movimento - que parece só se fazer sob empurrão - no sentido da mudança da representação social do negro. Mudança que só pode ser a  fórceps, só na insistência indignada e que não vai sem conflito e contradição. 
  

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