quinta-feira, 26 de março de 2015

O meu racismo - ou como me tornei negro



  Não nasci negro... E o interessante é que minha certidão de nascimento corrobora tal afirmação. Está lá, pele branca. Mal sabia o cartorário a dimensão simbólica que o ato de me negar a negritude naquele documento comportava.
Pai branco e mãe negra, ambos com Ensino superior logo batalharam uma melhora progressiva de vida. Eu, criança já não cabia no branca da palidez recém nascida, mas isso não me lançava por si só a categoria negro, antes, moreninho.
  Cresci acostumado ao título, que não era tão bom quanto ter pele clara, olhos claros, lábios finos e cabelos lisos, mas servia. Servia para quê? Cresci arrumando apelidos para os amigos negros, rindo de piadas que comparavam pessoas de pele preta com macacos ou que os naturalizavam como pobres. Sem angústias para alguém que é moreninho e classe média.
  Não lembro exatamente como se deu, mas, a vida tratou de me bater na cara e me deparei com algumas situações: um atendente me diz que eu era preto e ainda por cima usava brinco – é, eu usava; um adulto me chama de preto como quem me ofende; percebo que raramente há pessoas com o mesmo tom de pele que o meu nos meus círculos, na escola, filhos dos amigos dos meus pais... Um desconforto se coloca.
  Em algum momento leio ou escuto sobre como negros não se declaram como tal, e passo a perceber que há um melindre em chamar alguém negro e é quando começo a me declarar por esse termo. E quando faço isso escuto: “ah, mas você não é negro, é moreninho”. O tom é de consolo.
  Começava a ficar cada vez mais nítido o que é o racismo em nossa sociedade. E como tudo o que se liga à negritude tem um valor negativo, a saber, a própria palavra “negro” ou “preto”, o cabelo crespo – ruim –, nariz achatado, o candomblé, a ubanda, enfim, quanto mais preta a pele e quanto mais identificado ao que é de negro, maior a desconfiança para com o indivíduo ou manifestação.
  Quando finalmente entendi que tudo isso era o resultado dos anos de escravidão passei a exigir de mim uma posição política. Eu precisava “ser negro”, notem, ainda não era negro, mas sentia que ao me declarar assim podia contribuir na lenta transformação da representação social do negro. Uma estranheza ainda pairava.
  Foi apenas recentemente que pude finalmente me tornar negro e reconhecer o que é parte da minha história, e isso só foi possível quando reconheci dentro de mim, não só o oprimido, como também o opressor que pensei já não existisse mais. Explico-me.
  Sempre considerei que não sofria preconceito racial, o fato de ser de classe média alta parecia algo que me blindava – e de fato blinda. Porém, isso mudou quando me vi como o opressor de mim mesmo. Percebi o quanto me fechei pela aparência física, me assustei com o que eu via nos olhos das meninas – brancas – quando me olhavam – e que nada mais eram que reflexos do que estava nos meus olhos – e o quanto desejei na solidão da adolescência, ter outros traços menos... De negro. Notei, com surpresa, do receio e dos cuidados que sempre tomei para que não fosse confundido com um ladrão em super mercados e lojas, o medo que tenho de entrar em certos lugares com roupas mais simples, como se eu mesmo me achasse alguém suspeito ou merecedor de suspeitas. Por fim, com tanta opressão da minha parte contra mim mesmo, eis que me senti oprimido. E desta feita pude entender de maneira mais profunda que antes o que é o resultado do processo de racismo. Numa sutileza que pesa uma tonelada. Pesou a mim.
  Essa é a história do meu racismo e ela só serve na medida em que diz um pouco do racismo em nossa sociedade – e não só da minha neurose que diz respeito só a mim – isto é, só vale enquanto diz de algo coletivo, compartilhado e amplamente vivido.
  Falo sob o ponto de vista individual para mostrar o meu modo de perceber como o verdadeiro opressor é a cultura, aquilo que se pratica diariamente e que apenas alguém que se identifica ou é identificado como negro pode sentir, pois esta palavra trás tantas outras a baila...
  É evidente que há expressões de racismo muito mais violentas e é o que mais me incentiva a continuar fazendo minha parte para a mudança dessa representação social. E o escrito que aqui está, garanto-lhes, saiu com alguma hesitação. Eu só espero que me sirva ter escrito e, com sorte, que soe como um convite a quem ainda precise reconhecer alguma parte de sua história.    

5 comentários:

  1. Lindo texto Rodrigo! Muito difícil olhar a verdade em nós mesmos e ainda mais, torná-la um escrito para se dar a público. Grande abraço!

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  2. Lindo texto Rodrigo! Muito difícil olhar a verdade em nós mesmos e ainda mais, torná-la um escrito para se dar a público. Grande abraço!

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  3. Lindo texto. Introspectivo e só capaz de ser compreendido por quem vivência tal situação.

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  4. Extremamente emocionada, com imenso orgulho do grande homem que se tornou.

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